Na conclusão deste período de reflexão sobre textos bíblicos referentes à liderança cristã, considerámos o panorama geral da dinâmica de relacionamento entre homens e mulheres. Focámos a nossa atenção no reconhecimento da igualdade entre ambos, do ponto de vista histórico, tendo em consideração alguns momentos ou circunstâncias cruciais: a Criação, a Queda, o ministério de Jesus e, finalmente, a Igreja.
- Génesis 1:27: “Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” O registo da Criação da Humanidade deixa clara a equiparação entre homens e mulheres. Os dois são criados para uma dinâmica de parceria, em igualdade, ambos à imagem de Deus. Eva é criada a partir do lado de Adão, numa clara alusão à relação de igualdade e complementaridade que viria a estabelecer-se ente ambos. O termo tradicionalmente usado para descrever esta parceira (ajudadora, auxiliadora ou adjutora) parece dar a entender ter sido criada “para servir” o homem, mas tal é um enviesamento de tradução e interpretação que não honra o sentido do termo original. Este enviesamento fica claro, quando contrastamos essa ideia com a utilização do mesmo termo para, por exemplo, o salmista se referir a Deus, como o nosso “ajudador”, o que não pode, de modo algum, significar que Deus existe “para nos servir”.
- Génesis 3:16: “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua concepção; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” Todo o desequilíbrio e desigualdade entre homens e mulheres tem a sua origem não nos propósitos ou desígnios originais de Deus, mas sim nas consequências diretas e indiretas da Queda e consequente disseminação do pecado, por toda a humanidade. Apesar de a principal consequência da Queda ser a morte (espiritual, física e eterna), todas as demais implicações, registadas em Génesis 3:14-19, afetam a humanidade e carecem de redenção. O domínio do homem em relação à mulher é uma dessas consequências, a qual tem persistido, ao longo dos séculos entre a maioria esmagadora das culturas e sociedades.
- Quando Jesus veio, anunciou um Evangelho de arrependimento e redenção. Parte dessa redenção materializa-se na restauração da mulher ao seu devido papel e lugar. Quando consideramos as diversas interações de Jesus com mulheres (ex: mulher Samaritana, mulher adúltera) e a forma como as valorizou e honrou (ex: primeiras pessoas a saberem da Sua ressurreição) elevou-as a uma dignidade e respeito que eram absolutamente contracultura, na sociedade do primeiro século. Podemos dizer que este foi o grande momento transformador e inaugural de um longo processo de restauração da igualdade nas relações entre homens e mulheres.
- Gálatas 3:28: “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus.” Quando Paulo doutrina a igreja, tem diversas abordagens ao papel e lugar das mulheres que, para leitores do século XXI, podem parecer retrógadas e misóginas. No entanto, importa salientar que, na maioria dessas intervenções, Paulo está a fazer eco de preocupações culturais, que, entendidas no contexto do primeiro século, não depreciam as mulheres, mas denotam um sentido de proteção e, em diversos casos, até elevam a mulher acima do que a sociedade lhe permitia. O texto de Gálatas 3:28, que não se extingue no conceito do acesso à graça da salvação ser igual para todos, mas que enquadra a igualdade no facto de sermos todos “um, em Cristo Jesus“, é um dos exemplos dessa elevação.
- O Evangelho veio trazer redenção não só da máxima consequência do pecado (morte), mas de todas elas. No entanto, pode-se dizer que é uma redenção em potencial, no sentido em que quem quer beneficiar da mesma tem que a aceitar. De igual modo, a restauração da igualdade entre homens e mulheres passa a ser possível, com o Evangelho, mas é preciso ser aplicada, na prática. Ou seja, compete à igreja agir, no sentido de concretizar essa redenção potencial. O que vemos nas páginas do Novo Testamento é o registo do início dessa restauração, durante as primeiras décadas do Cristianismo. Nestes anos iniciais da vigência do Evangelho, encontramos:
- Mulheres que colaboraram com Paulo, no seu ministério – Romanos 16:1-7;12; Filipenses 4:2-3;
- Mulheres que mostraram características de liderança – Romanos 16:1-2; 12; Atos 16:40;
- Mulheres que acolhiam a igreja nas suas próprias casas, o que indicia que seriam as responsáveis pelo grupo de irmãos que lá se reunia – Atos 12:12; 16:14-16, 40; Romanos 16:3-5; Colossenses 4:15 e, possivelmente, II João 1:1;
- Mulheres que pregavam e ensinavam – Atos 18:26; 21:8-9; I Coríntios 11:5; II Timóteo 1:5; Tito 2:4;
- Mulheres identificadas como “presbíteras” – I Timóteo 5:2; Tito 2:3;
- Mulher identificada como “diaconisa” (de acordo com o que Paulo escreveu a Timóteo, qualificam-se como líderes) – Romanos 16:1.
- Aquilo que lemos no Novo Testamento é o início da curva ascendente de restauração da mulher ao seu devido lugar, em pé de igualdade com o homem. Infelizmente, o que temos visto, ao longo dos últimos 2000 anos, é uma cristalização, na melhor das hipóteses, do status quo alcançado nessas primeiras décadas do Evangelho. E, ainda assim, com a frequente diluição ou camuflagem do que, de facto, foi alcançado nesse domínio, o que até acaba por nos fazer regredir. Compete à igreja, hoje e em cada época, continuar esse ministério de restauração, do ponto de vista prático. Para esta tarefa, é necessário desafiar os entendimentos ditos “conservadores” e as interpretações superficiais e enviesadas do texto bíblico. É preciso investigar mais fundo e com maior intensidade, não só no registo neotestamentário, mas também a cultura e contexto social da sua escrita.
Reconhecer a igualdade entre homens e mulheres não é algo que se alcança descartando o texto bíblico e abraçando os ideais da cultura e sociedade atuais. O exercício que deve ser feito é exatamente o contrário. É necessário estudar afincadamente o que a Palavra diz, verificando aquilo que ela, de facto, determina, demonstra e clarifica. Nesse processo, iremos perceber duas coisas importantes:
- A existir alguma coisa que deve ser descartada é a bagagem religiosa tradicionalista, alimentada ao longo destes dois milénios por processos de fabricação humana, assentes em leituras e interpretações superficiais, enviesadas e condicionadas por pressupostos misóginos e machistas.
- A igualdade entre homens e mulheres que o Evangelho vem restaurar é ainda melhor e mais perfeita do que a defendida por qualquer sociedade ou cultura, porque foi desenhada pelo próprio Criador.