Exemplo

De acordo com o calendário estabelecido para o processo de transição para uma liderança plural e mista, na nossa igreja, encontramo-nos na fase final do debate e estudo bíblico sobre a liderança. Importa, acima de tudo, honrar a Bíblia e segui-la em tudo aquilo que ela ensina explícita e implicitamente. O nosso propósito é investigar a Bíblia da melhor forma possível e com o nosso maior afinco, de modo a não ficarmos limitados, nem condicionados por qualquer pressuposto ou tradicionalismo extrabíblicos. Neste sentido, demos continuidade ao estudo sobre as qualificações do líder cristão, iniciado no domingo passado.

As qualificações do líder cristão, sobre as quais Paulo escreve a Timóteo e a Tito, apontam no sentido daquele que apascenta o rebanho ter uma vida tal que possa ser copiada, nos seus comportamentos, atitudes e estilo de vida, por aqueles de quem cuida. Do estudo do texto de Tito 1:5-9 resultaram as seguintes considerações:

  • De uma leitura mais superficial do versículo 5, no qual Paulo instrui Tito a estabelecer líderes (anciãos) em cada cidade, poderíamos concluir que compete à liderança estabelecer outra liderança. Em vez disso, ao estudarmos um pouco mais a fundo o texto e contexto desta orientação, percebem-se dois pontos importantes:
    • Na medida em que o contexto é o de igrejas recentes, sem grande maturidade espiritual e ainda sem o guia de referência por excelência (o Novo Testamento ainda estava em formação), era necessário que fossem auxiliadas pelos mais experientes e conhecedores da vontade de Deus. É, portanto, natural que Paulo delegasse a um líder esta tarefa, como forma de orientar as igrejas no processo de escolha dos seus líderes.
    • No final do versículo 5, Paulo diz que Tito deveria proceder em conformidade com aquilo que já lhe tinha instruído. Ou seja, Tito deveria proceder da mesma forma como o próprio Paulo fazia e esta ideia remete-nos para Atos 14:23, onde lemos sobre Paulo e Barnabé conduzirem as igrejas em processos de votação, para eleição dos seus anciãos (do grego cheirotoneó – “eleger pela mostra das mãos” ou “escolher por voto”). Assim, a tarefa de Tito não era a de “estabelecer” ou “designar”, de forma unilateral, a liderança em cada igreja/cidade, mas sim a de ajudar e conduzir as igreja em processos de eleição dos seus próprios líderes.
  • À semelhança do que escreve a Timóteo, Paulo enuncia uma série de critérios e qualificações, que vão desde a vida individual, à familiar e social do candidato a líder. Além disso, neste texto em particular, Paulo imprime uma especial nota referente ao seu conhecimento das Escrituras (vrs.9), sendo um critério determinante quer para ensinar e admoestar os que as querem seguir, quer para argumentar com quem as desconsidera ou contraria (visando, provavelmente, o ambiente mais hostil ou agressivo que se vivia em Creta, como descreve nos versículos seguintes).
  • No versículo 7, deparamo-nos, mais uma vez, com a forma flexível ou intercambiável como Paulo se refere aos lideres, ao usar o termo “bispo”, depois de usar o termo “ancião” (ou presbítero) no versículo 5. Mostra, assim, que não está a falar de títulos ou cargos diferentes ou até de uma estratificação hierárquica, mas está a usar termos diferentes (com nuances de funções e responsabilidades diferentes) para as mesmas pessoas.

Depois destas considerações sobre as qualificações para a liderança, debruçámo-nos um pouco sobre as características que essa liderança deve demonstrar, no próprio exercício das suas funções. Da leitura de I Pedro 5:1-3, apurámos as seguintes notas:

  • Pedro identifica-se também como presbítero (ancião), ao dirigir-se aos demais presbíteros que estavam “entre” (não “acima”, nem “sobre”) os seus destinatários.
  • Instrui-os a apascentarem o rebanho, o que nos remete para o conceito de “pastor”, mais uma vez, consubstanciando a ideia de que várias designações eram usadas para as mesmas pessoas afetas à liderança, tendo em consideração as suas diferentes dimensões e tarefas.
  • Não deveriam apascentar por motivações que não fossem a livre e espontânea vontade, não cedendo a pressões ou condicionalismos externos. O propósito desse pastoreio também não deveria ser o “lucro” ou qualquer outra coisa de que pudessem vir a beneficiar, mas deveriam servir com um “ânimo pronto” (vontade genuína de servir).
  • Os líderes também não devem se assenhorar do rebanho (do grego katakurieuo -“exercer autoridade sobre”, “dominar”, “assenhorar-se”), mas servir de exemplo a todo o rebanho. Este conceito de servir de exemplo, não só remete para as qualificações prescritas a Timóteo e Tito, como também nos obriga a refletir nas atitudes e posturas do líder, no exercício da sua liderança:
    • Se os liderados devem seguir e imitar o seu exemplo, então, necessariamente, o líder não está “acima” deles, mas sim “entre” eles, como um par, um igual;
    • Se o líder conduzir o rebanho com recurso a estratégias de manipulação, opressão, julgamento, prepotência, chantagem, domínio, sobranceria, superioridade, é isso que será copiado pelo rebanho;
    • Usando o exemplo da canoagem, se o líder for o timoneiro que dá as palavras de ordem aos remadores, o mais provável é que os remadores, mais cedo ou mais tarde, deixam de remar e copiam-lhe o comportamento de “dar ordens”;
    • Ainda usando o mesmo exemplo, se o líder for aquele que está à frente (perante), mas, em vez de dar ordens, está ele próprio a remar, é natural que, mais cedo ou mais tarde, os demais também lhe sigam o exemplo, comecem a remar e aprendam como se faz.

O conceito da liderança ser, acima de tudo, “servir de exemplo” obriga à desconstrução de qualquer vislumbre de hierarquia e consequente exercício de autoridade (ainda que bem intencionada, benevolente ou “espiritual”). Onde a autoridade não tem lugar, qualquer indício da mesma é autoritarismo. Liderar pelo exemplo não é estar “sobre”, “acima”, “por cima”, mas sim estar “entre”, “em”, “perante”. É num contexto destes que é aplicado, vivido e que é sequer possível o princípio da sujeição mútua (“sujeitai-vos uns aos outros”).

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